mácula
inventário de marcas
arqueologia da memória
premonição e reflexo do passado
Trabalho realizado a partir da coleta de marcas impressas em tecido, onde funcionou o principal aparelho de repressão da ditadura militar no Sul Fluminense, com prisões, torturas e mortes. Uma edificação conhecida como “Arquivo”, construída em 1969, dentro do local em que estava instalado o 1º Batalhão de Infantaria Blindada (1º BIB), em Barra Mansa/RJ. Estrategicamente localizado perto da CSN e da Academia Militar das Agulhas Negras.
O local vai abrigar o Museu do Trabalho e dos Direitos Humanos, um centro de memória e cultura, que vai acolher documentos oficiais e acervos de perseguidos durante a ditadura.
"Houve dois locais de graves violações dos Direitos Humanos, o quartel do batalhão do Exército em Barra Mansa e a Usina da CSN em Volta Redonda. No quartel, edificaram em 1969 um local afastado para torturas conhecido como “ARQUIVO” e para prisão solitária sem luz conhecido como “SUBMARINO”. Ali dezenas de jovens foram covardemente torturados por equipes treinadas de militares do serviço secreto do Exército. As sessões de tortura eram tapas na cara, choques elétricos, pau de arara dentre outros. Em casos mais perversos ainda, houve chicoteamento, palmatórias, espancamentos mortais e esmagamento de crânio em torno mecânico, além de ocultação de cadáveres com esquartejamento de cabeça e incêndio de corpo."
(trecho da entrevista com o historiador Edgard Bedê, publicada na Revista EntreLetras, n. 1, jan/abril 2021)



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A coleta das marcas
O trabalho começou a ser planejado em maio de 2022, a primeira ação aconteceu com a coleta de marcas do local, entre os dias 7 e 10 de julho de 2022.
Num processo de imersão, foram coletadas marcas da parede externa da casa onde aconteceram as prisões e torturas, a partir de técnicas de gravura com monotipia e frotagem.
A monotipia foi realizada com a aplicação de tinta guache preta nas superfícies das grades e blocos de tijolos, impressa em tecidos de algodão branco. A escolha da tinta guache foi em razão de ser um material efêmero e de fácil remoção, para não alterar as características do lugar.
A frotagem, feita a partir da fricção com giz de cera preto sobre tecido de algodão branco. Aplicada sobre as paredes, a técnica também foi escolhida em virtude da preservação do local.
Participaram desta etapa Cleston Teixeira e Rafael Crooz, que atuaram na produção e documentação da ação.



2. As estruturas lineares
Ao retornar a São Paulo, todo o material coletado foi organizado. As linhas das suturas começaram a aparecer de forma espontânea, na ação de unir partes dos tecidos. Aos poucos as linhas pretas, que antes eram só pontos de união, começaram a se espalhar para a superfície das marcas como índice de lugares, caminhos, mapas, peles, cascas...
O texto “Cascas”, do filósofo Georges Didi-Huberman, foi fonte de referência para este trabalho e também para a montagem do espetáculo “Nasce Uma Cidade - Operação Cascas”, em 2017, que teve como foco o local onde aconteceram as torturas e mortes em Barra Mansa/RJ. Concebido em forma de trilogia por Rafael Crooz e o grupo A Margem, com apoio do Centro de Memória do Sul Fluminense, com base no material coletado pela Comissão Municipal da Verdade de Volta Redonda (2013-15).
O trabalho desenvolvido com as impressões em tecidos, para a série MÁCULA, faria parte da montagem do terceiro ato deste espetáculo. Planejado para 2022, não aconteceu, mas a produção da série acabou ganhando autonomia e continuou o seu percurso, independente do espetáculo.
As estruturas lineares foram tomando corpo no trabalho e criando uma outra camada de leitura do local. Como ramificações e raízes, trabalhando também com a ideia do tempo da ação da mão ao fazer as suturas. Feridas abertas, máculas, manchas que povoam as memórias e assombram as visões...


3. A casa como corpo
O desenvolvimento do processo do bordado sobre o tecido começou a apontar para a casa, de onde tinham saído todas as marcas. Os tecidos passaram a revelar a concretude do lugar.
Como uma espécie de metáfora de “corpo de prova” (termo técnico usado para testar limites de esforços e resistência relativos à arquitetura) eles atestam em suas partes tudo o que ficou marcado na capacidade de resistência de suas paredes.
“Corpo de prova”, também entendido como o testemunho da resistência de quem sobreviveu e a violência de quem torturou.
A ideia toma forma e faz sentido, expandir para as paredes da casa as estruturas lineares que os tecidos revelaram. A data escolhida para esta ação foram os dias 31 de março e 1º de abril de 2023, período em que os movimentos por memória e justiça marcam os 59 anos do golpe militar no Brasil.
Os desenhos nas paredes foram feitos com carvão vegetal, um material efêmero que está simbolicamente relacionado à morte da matéria e à possibilidade de voltar à vida. Uma metáfora visual para as coisas que existem e param de existir, deixando uma sutil evidência, que nos obriga a contemplar a nossa própria mortalidade.
Voltar para a matriz inicial, onde as marcas foram coletadas e interferir ali também com as estruturas das linhas. Estruturas lineares que se alastram. Fios e marcas como testemunhas do tempo e dos territórios de resistência. Memórias que resgatam em suas tramas as estruturas do afeto, como um organismo vivo.
A casa passa a ficar marcada como um corpo e suas cicatrizes.
Observação: As ações foram todas documentadas com fotos e vídeos, para depois serem utilizados na exposição em conjunto com os tecidos.



